Sábado


Bruna Bonalume

- Nando, a bolsa estourou.

Três horas da madrugada no extremo sudeste dos Estados Unidos.

Três horas da tarde no sul da China.

Isabela senta na beirada da cama. Na espreguiçadeira recostada à parede está a mala da maternidade. Semiacabada. Isabela encara a mala com lentes de névoa agarradas aos olhos. Investe os punhos cerrados contra as pálpebras fechadas em mais uma tentativa. Aquele não era seu horário habitual de despertar, especialmente durante a gestação, que quase atingiu trinta e sete semanas. Que mais preciso levar? O que preciso fazer primeiro? Acho que vou tomar um banho. Isso. E escovar os dentes.


Chega sôfrego ao quarto de hotel. Com a mão direita Fernando lança os pertences dentro da mala. A mão esquerda maltrata o celular, no viva voz com a companhia aérea. O tempo presente é palpável. Digerível. Esferas gordas rolam pela garganta e arrebatam o estômago. Zunidos assaltam o cérebro, percorrem os canais auditivos e rasgam os tímpanos imprimindo uma exacerbada vividez. Arranca pedaços do dia e os guarda na mala, como souvenir.


Isabela conduz as rodas do automóvel pelo asfalto da metrópole. Ela ainda não teve tempo de acostumar-se às avenidas largas e ao intenso tráfego, que independe do horário. Cinco meses atrás encontrava-se no Brasil, em uma cidade de interior, contando com a ajuda dos familiares para organizar a mudança para os EUA.

Cinco meses que poderiam ter sido cinco anos.

Busca por casa, enxoval, plano de saúde, ginecologista, obstetra. Conhecer a redondeza, encontrar farmácia, supermercado, lojas de conveniência. Instalar água, luz, internet. Engolir os anseios da primeira gestação com dois comprimidos e uma pilha de caixas para organizar. Roupas para lavar. Casa para cuidar. Os projetos profissionais lotando o escritório, inundando a caixa de e-mails e as conversas via Whatsapp. Ela e Laís, com seus movimentos preguiçosos. Cada uma no seu ritmo, ainda que habitando o mesmo corpo.

No estacionamento do hospital, abre a porta do carona e retira a mala. Semiacabada. O bebê conforto no banco de trás não estará mais vazio quando retornar ao carro.


Corre até o guichê do check in pois a urgência do presente o engole voraz. Cada centímetro conquistado pelos pés é uma distância a menos que o separa de um quarto de hospital. Um quarto que Fernando não sabe o número, o andar. O quarto que ele vislumbrou estar quando Isabela lhe entregou a caixinha contendo o teste positivo. Inalou a grandeza da parentalidade naquele exato momento. Uma família agora depende de mim. A minha família.

A promoção no trabalho fez-se real, e com ela, a mudança e as viagens. Inúmeras viagens à China. Eu vou dar conta. Preciso dar conta.

E agora está ali. Bradando contra uma multidão invisível. Tentando expulsar de si os quilômetros que os separam, a constatação do inevitável.


O quarto do hospital é amplo. No centro, uma cama que parece confortável. À sua esquerda, um monitor de bom tamanho é acompanhado por quase uma dezena de dispositivos digitais. Dois sofás, um em cada extremidade. Um balcão acompanha um deles, e mais cadeiras. Assento para dez pessoas, pode-se dizer. Mas é a poltrona do papai ao lado da cama central que desnuda sua condição.

Checagem de dilatação, batimentos cardíacos de ambas, posição da bebê, aplicação do cateter.

- Senhora, precisamos que preencha este formulário.

Nome completo, endereço, idade, tipo sanguíneo, obstetra, pediatra, idade gestacional. Problemas cardíacos? Na família? Diabetes? Alergias? Formulário ou exame pré-vestibular? Desponta em uma crescente o primeiro manifesto de contração. Isabela respira profundo. Um, dois, três, um, dois, três. Prende a respiração como se aquele fosse o controle para cessar o manifesto. Cerra os olhos e deixa a humidade navegar pelas laterais da face. Gotas graúdas desaguam afônicas no travesseiro que cheira a cloro.


Eu tive um sonho com você. Quando sua mãe estava bem no começo da gestação, eu sonhei com você. Nós ainda não sabíamos o sexo. Quer dizer, sua mãe não sabia. Ela achava que seria menino. Mas eu, tinha certeza que era você quem estava vindo. Eu simplesmente sentia. Nunca disse isso à sua mãe, nem mesmo no dia da ecografia que te revelou. Fiz cara de surpreso, emocionado. Mas eu já havia sonhado com você muito antes.

De mãos dadas caminhando por um shopping à céu aberto. Nós três. Você no meio. Com os seus cabelinhos loiros, encaracolados nas pontas, sendo levados pelo vento. O som da sua risada. Não preciso fechar os olhos para reprisá-la, ela ainda está fresca. Como uma tecla de piano investida repetidamente. Embora eu não precise apertar teclas ou botões. Sua risada é uma parte de mim.


- Onze centímetros de dilatação, sua bebê está chegando!

Contrações a cada dois minutos. Um minuto de contração. Um minuto empurrando. E apenas as vozes das enfermeiras ecoando em seus ouvidos.

- Push, push, push.


Papai havia planejado tudo. Você era para vir em três semanas, Laís. Era para ter dado tempo. Era para eu ter dado conta.


- Senhora Isabela, será necessário iniciarmos uma cesárea. Sua bebê não está descendo e pode tornar-se arriscado esperar mais.


É noite. Uma cidade começa a desenhar-se lá em baixo. Pessoas vivendo suas vidas em seus pontos brilhantes amarelados. A primeira parte do trajeto quase concluída.

Senhoras e Senhores, estamos iniciando o procedimento de descida no aeroporto Heathrow, em Londres. As condições climáticas são favoráveis ao pouso e...

Será que você já divide o mesmo ar que respiro?


Agora está na sala de cirurgia.

A barreira da represa desaba e uma correnteza gélida invade suas veias. Os braços tremem. Os dentes encontram-se uns aos outros em movimentos sucessivos. Aquele pedaço de corpo que não foi tomado pela anestesia encontra-se em uma nevasca simulada.

Tudo é excessivamente branco. Ofuscam seus olhos.

- Não durma, você precisa estar acordada – eles dizem.

E agem rápido. Naquela sala de cirurgia existe uma ação para cada segundo.

E falam mais. Fazem perguntas. Isabela só consegue responder com yes, no, yes.

E então há uma fração de segundo que dura por um tempo indeterminado.

Um choro.

As três e trinta e oito da tarde de sábado Isabela ouve o primeiro choro de Laís. Um horário que ela só irá descobrir dois dias depois.

As enfermeiras aconchegam sua bebê logo abaixo dos seus seios e ela enfim conhece o pequenino ser que fará parte do resto de sua vida.

- Bem vinda filha! Seu papai já vem.

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Bruna Bonalume

E-mail: brubonalume@gmail.com

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