O lugar mais feliz da terra


Bruna Bonalume

Enquanto o avião taxiava em direção à pista de decolagem, a pulsação de Caio Ferreira quase tornara-se audível. Um suor espesso escorria por suas mãos e têmporas. Só iria melhorar um pouco quando estivessem na primeira hora de voo. Era sempre assim.

- Tudo bem por aí Sr. orelhudo? – perguntou Carina, ainda de pé no corredor ao final daquela fileira de quatro bancos. Estava tirando da mala de bordo alguns lanches extras e cobertores para as crianças.

- Vou ficar bem sim, Sra. ratinha – respondeu ele. Pode me passar a água e o meu remédio? E alias, já podemos tirar isso da cabeça, né?

- Não papai! A Bia disse que tem que usar as tiaras a viagem toda! – disse Hugo, sentado ao seu lado.

As crianças estavam nas poltronas do meio, completamente imersas em suas telas, desde o momento em que ali sentaram. Ou pelo menos, era o que parecia. Foi por insistência de Bia que ainda em casa, momentos antes de saírem para o aeroporto, todos puseram suas tiaras com orelhas pretas de ratinho. As quatro tiaras eram iguais, exceto pelo laço vermelho com bolinhas brancas nas tiaras das meninas. Sem dúvidas que nos parques em Orlando, haveriam milhares de pessoas usando tiaras similares, embora ali dentro do avião, fossem apenas os Ferreira.

- Tô me sentindo bem mais um Pateta do que um Mickey, mas vamos lá.

Após finalizarem a janta servida pelas comissárias, Caio aguardou os filhos pegarem no sono para então engolir dois comprimidos de uma vez só. Queria acordar apenas quando estivessem novamente em solo. Disparou um beijo de boa noite para a esposa na outra ponta da fileira e deixou sua mente desligar-se de tudo.

Senhoras e senhores, aqui é o comandante Miller falando novamente. Estamos iniciando o procedimento de decida. As condições para pouso no aeroporto de Miami...

As luzes de cabine acenderam, passageiros já despertos abriam suas janelas enquanto outros levantavam-se para esticar as pernas ou irem ao banheiro. Caio também havia acordado, embora não conseguisse se mexer. Os batimentos do coração pulsavam em seus ouvidos, dentro de sua cabeça, enquanto o ar escapava de seus pulmões. Sentia como se alguém estivesse vestindo um cachecol em volta de seu pescoço, e conforme novas voltas eram adicionadas, uma leve pressão comprimia-o. Com todo o cachecol envolto, as duas pontas sobressalentes foram sendo puxadas em direções opostas, como se um nó estivesse sendo atado. Seus olhos, levemente esbugalhados pela pressão no pescoço e atordoados pelos batimentos cardíacos que vinham do cerne de sua cabeça, viram quando sua alma descolou de seu corpo físico. Isso é apenas um sonho, pensou. Um sonho incrivelmente real. Acorda Caio, ACORDA!

Sua alma, obtendo uma visão que apenas poderia vir do corredor do avião, encarava o corpo físico. Um corpo que dormia profundamente. Um homem de face plácida, cuja única barreira para um descanso revigorante provinha apenas daquelas poltronas pouco inclináveis do avião.

Caio, concentre-se. Pare de pensar e esforce-se em acordar!

Ali no corredor, Caio contemplava a cena de sua família dormindo. A cabeça de Bia descansava no colo da mãe, enquanto a de Hugo estava sobre o corpo físico do pai. Ninguém usava tiara. Carina deve as ter removido, já que sempre é a última a dormir – pensava. Pensando em tiaras Caio? Você deveria estar pensando em acordar!

Tinha algo naquela cena que o prendia. Algo que demandava ser visto. A pressão do cachecol mantinha seu ritmo, parecendo ter o intuito de encostar as paredes de sua traqueia umas nas outras, não deixando espaço para nem um fio de cabelo atravessar o canal. Como uma serpente cercando e enrolando-se em sua presa.

Faça mais esforço Caio, vamos lá! ACORDA!

Então ele viu. Uma sombra disforme e ao mesmo tempo solidamente preta na direção do seu centro, vinha rastejando pelo chão. Passou pelos pés de Carina, seguiu pelo chão à frente dos bancos das crianças e parou no de Hugo. Quando aquela criatura emergiu do chão, Caio percebeu que os batimentos em seus ouvidos retiveram-se. Pode ouvir uma gargalhada gorgolejante, como se provinda de um cadáver com a garganta entupida de água. Um ar gélido o envolveu, como uma nevasca de inverno rigoroso penetrando o interior de suas células. A criatura apoderou-se de Hugo, infiltrando-o pela boca, pelo nariz, pelos ouvidos, gargalhando uma torrente incessante. Caio gritava a plenos pulmões, lutando para impedir aquela posse, embora nenhum sopro saísse de sua boca e seus membros permanecessem como estátuas.

Quando a criatura havia se infiltrado por completo no menino, Hugo suspirou por um momento, e depois abriu os olhos violentamente, rasgando os cantos de suas pálpebras. Seu corpo foi ganhando uma tonalidade arroxeada e pálida e seus olhos apresentavam veios negros enquanto ele gritava, e ria gorgolejante. Sua boca, alongada para baixo como um ventríloquo com defeito, jorrava sangue borgonha.

Senhoras e senhores, aqui é o comandante Miller falando novamente. Estamos iniciando o procedimento de decida. As condições para pouso no aeroporto de Miami...

- Acorda papai, acorda! A gente já chegou – dizia Hugo, pulando em seu colo.

Caio despertou. Percebeu que corpo e alma estavam novamente unificados. Hugo nunca parecera tão cheio de vida. Tudo estava em ordem.


O primeiro dia no parque que se auto denominava o lugar mais feliz da terra, havia sido realmente mágico. Os Ferreira haviam chegado bem cedo, viram os trios elétricos dos personagens, almoçaram no castelo da Cinderela e até arriscaram-se na montanha russa do Pateta. Quase que as crianças perderam o show de fogos do final da noite para o sono. Quando chegaram de volta ao quarto do resort, os quatro atiraram-se na cama sem sequer tomarem banho. Naquela fração de segundo antes de pegar no sono, Caio percebeu que havia passado o dia inteiro sem pensar na criatura com que sonhara. Pelo visto a mágica deles cura até pesadelos – pensou adormecendo.

A programação do segundo dia era curtirem as dependências do resort em que estavam hospedados, que eram realmente agradáveis. Piscinas olímpicas com tobogãs e piscinas rasas para as crianças mais novas. Próximo delas estavam os playgrounds infantis. Para os adultos, haviam estações de bares salpicadas aqui e ali. Diversão para todas as idades, parecia ser outro lema do lugar mais feliz da terra.

Perto do horário do pôr do sol, a família Ferreira caminhava pelo resort, na direção do quarto, após terem finalizado a janta. Passavam naquele momento no pedaço de calçada próxima a um grande lago artificial. Havia uma faixa de areia que separava o passeio da água, e bem rente a ele havia uma estreita faixa de pedras.

- Olha mamãe, que lindo o pôr do sol lá no fundo! – dizia Bia, já subindo as pedras e quase atingindo a faixa de areia. Hugo seguia os passos da irmã mais velha.

- Crianças, cuidado com as pedras – falou Carina, segundos antes de Bia tropeçar e cair de joelhos em uma pedra lascada, gritando e chorando em seguida. Por um instante, Caio e Carina voltaram-se apenas para Bia, socorrendo-a e tentando identificar o quão profundo havia sido o corte.

- Aaaaaaai! Tá doendo muitoooo! – choramingava Bia.

- Caio, vai levando ela no colo o resto do caminho enquanto eu pego o... – respondeu Carina procurando Hugo. Quando ela o avistou, sentiu cada célula de seu corpo congelar.

Hugo estava a poucos centímetros da margem da água, e os olhos do crocodilo já apontavam acima da superfície. Carina gritava desesperada enquanto Caio tentava correr na direção do garoto, deixando Bia sentada sob as pedras ainda em choque pelo tombo. Quando Hugo percebeu a boca do crocodilo abrindo-se em sua direção, ainda conseguiu olhar para trás uma última vez. Viu sua mãe petrificada, chorando desesperadamente e seu pai correndo em sua direção, e então antecipou a morte com um pedido de socorro estampado em seus olhos lacrimejados e repletos de temor:

- Mamãããe!


Quantos minutos haviam passado até o corpo de bombeiros chegar ao local, seguido pelos oficiais da polícia e da equipe de mergulhadores, Caio não sabia precisar. Mas a equipe de mergulhadores parecia estar há uma hora, talvez duas, trabalhando no resgate. Quando o barco deles apontou na meia escuridão do lago, abatida pelos feixes de luz do caminhão dos bombeiros, Caio quis acreditar que aquele poderia ser um sinal de esperança. Um dos homens desceu do barco carregando um corpo pequeno, os membros pesando para baixo, seguindo apenas o balanço do caminhar.

Por um segundo, Caio ainda pensou que tudo aquilo pudesse ser mentira. Só quando entendeu que aquelas eram mesmo as roupas de Hugo, percebeu que havia perdido seu garoto. Sobre a maca dos bombeiros, com a camisetinha que no final da tarde daquele dia dançava em seu corpo, e agora apresentava-se esticada na região do abdômen, jazia Hugo pálido e arroxeado. Seus olhos abertos ainda retratavam o mesmo semblante de socorro dos instantes anteriores ao ataque.

Um grito que parecia ter garras começou a percorrer os pulmões de Caio como se não soubesse mais o caminho de saída, e então ele olhou na direção do lago como se o quisesse punir. E a viu. Emergindo do lago, a criatura que não possuía olhos o encarava. E ria. Sua risada gorgolejante de cadáver com a garganta entupida de água, ecoava audível e inundava Caio por inteiro, transbordando desespero até os pés que pisavam o chão do lugar mais feliz da terra.

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Bruna Bonalume

E-mail: brubonalume@gmail.com

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