O ano que não tem fim


Bruna Bonalume

Acorda. Trabalha. Dorme.

O ano inteirinho.

Ano que vem será melhor. Há muitos anos ele mente para si mesmo. Talvez seja isso que mantenha sua motivação.

Mentir para si mesmo.

Seria esse o lado bom da mentira? Enganar-nos para suportar a dor do real.

A data de entrega do pedido já está quase batendo à porta.

Se bem que ninguém bate à sua porta.

Uma visita.

Um abraço.

Uma conversa. Para jogar ao vento as mentiras que ele cansa de carregar mentalmente.

Nada.

É por isso que ele mente para si mesmo.

É preciso.

A verdade, se é que ele pode falar sobre verdades, é que ninguém está interessado nele.

Apenas no pedido.

Este ano serão quase dois bilhões de unidades.

Acorda. Trabalha. Dorme.

Sente o corpo velho e cansado.

Dia após dia o destino é a fábrica. Sempre a fábrica.

Quantas vidas cabem em “dia após dia”?

O que chamam de tempo serve apenas para atender ao prazo do pedido.

Não pode atrasar. Não pode faltar.

Quase dois bilhões de unidades.

De onde vem a matéria-prima? A mão de obra? A embalagem? E a logística do transporte?

Só ele sabe as respostas. Ou, continua mentindo para si mesmo que as sabe.

Nem a idade avançada ou o excesso de peso (que ironia) livram-no de todo o labor. Ninguém se compadece.

Apenas geram mais e mais expectativas à sua espera.

Monitorar os comportamentos de cada um dos seus clientes.

Estabelecer quem irá receber.

Produzir os quase dois bilhões de unidades.

Entregar pessoalmente uma a uma.

Continue comportando-se bem, que aí na próxima você ganha mais.

Frase decorada em mais de sete mil idiomas diferentes, caso um dos seus clientes o veja descendo pela chaminé.

Frase? Talvez não.

Ao final da noite (ou seria ano?) que parece não ter fim, ele retorna para casa.

Sem pagamento.

Sozinho.

Exausto.

Ano que vem será melhor.

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Bruna Bonalume

E-mail: brubonalume@gmail.com

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